Nós, portugueses, grandes navegadores e escuteiros de continentes, fomos sempre fracos conhecedores dos cantos da própria casa, dando-se o caso espantoso de havermos batido a Abssínia, o Tibé, o inferno, deixando intactos os recessos fragosos da Serra da Estrela e do Barroso.
Vitorino Nemésio, Viagens ao Pé da Porta
A reflexão actual sobre a identidade portuguesa converge na sua organização dicotómica entre dois espaços, Portugal e os outros países (cá e lá, aquém e além) conduzindo, por isso, uma visão da cultura portuguesa como uma cultura de fronteira apoiada na realidade geográfica do país periférico ou semi-periférico que somos. O meu querido professor Eduardo Lourenço no artigo intitulado “«Lá fora» e «Cá dentro» ou o fim de uma obsessão” aponta como “Cá dentro” a maneira de ser insular dos portugueses que se sentem “cercados de mundo, que visto e sentido do interior da ilha que somos, ou da nossa interioridade simbólica, é um «Lá fora» que, em última análise, nada altera o sentimento de intimidade, de conforto, de plenitude que nos confere a ideia de cá dentro”. Estas interrogações sobre o lugar da cultura portuguesa afastam a ilusão de nos fecharmos e preferirmos o refúgio de um passado que nunca existiu e de um presente que não tem futuro.
Por outro lado, a pequena escala em que supostamente o português vive: “É no meio os pequenos objectos que ele [o português] se sente à vontade, é neles que investe enchendo a casa de mil bibelôs, fotografias, cobrindo as paredes com coisas pequenas, quadros, cromos, ex-votos, etc.” terá afirmado José Gil. Acredito que em Portugal se vive a ilusão de liberdade ou síndrome de Liliputh: mergulhados na pequena escala não chegamos a viver uma genuína liberdade, mas apenas a sua ilusão. Penso que é importante uma perspectiva aberta de identidade, com os olhos postos na compreensão da diferença. Ao invés de uma visão centrada apenas no que nos distingue sem ter em conta a complexidade e o relacionamento com outras realidades e outras culturas. Neste sentido é importante reflectir sobre as contradições de um Portugal que foi simultaneamente centro de um grande império colonial, que não conseguiu gerir convenientemente, e a periferia de uma Europa que se vai desenvolvendo sem quase o incluir.
Vivemos um excesso de identidade que se deve aos mitos e lendas que enfermam algumas visões do nosso passado. Mas do que se trata é olhar o nosso passado com rigor histórico e desfazer as ideias falsas. O excesso de identidade pode ser uma das causas da nossa paralisia social e cívica. “Somos portugueses antes de sermos homens” e o peso dessa identidade afecta os percursos individuais e degrada o espaço público. O excesso de identidade conforta e imobiliza, somos o que somos e isso desculpa-nos, exime-nos do debate, protege-nos do conflito e empurra-nos para o queixume.
Crise ou excesso de identidade? É natural que continuemos a padecer de uma chamada crise de identidade. Porque temos cerca de oito séculos de autonomia, temos uma inevitável complexidade quanto aos mecanismos de identidade, dado que esta última sempre foi sendo reinventada ao longo da nossa história. Parece que quando não há crise no horizonte, é Portugal que definha em substancial crise. Porque a ideia de crise talvez seja tão antiga quanto a própria ideia nacional. Mesmo o sebastianismo que nos marca talvez não passe de uma simples mitificação da crise. Se uns poderão falar, à maneira do primeiro Antero, na ideia de decadência, já outros, ao estilo de Pessoa, apontam a existência de uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização, a degenerescência. Porém, a consciência de crise talvez constitua um excelente estímulo para a superação da mesma. Vamos acreditar que sim!